Morte de Chávez, como sua vida, mostra divisões do mundo

March 20, 2013

Mark Weisbrot
Al Jazeera English, 17 de março, 2013
Em inglês | Em espanhol

A impressionante reação mundial à morte do presidente Hugo Chávez da Venezuela, sobretudo no hemisfério ocidental, pôs em forte destaque o mundo “multipolar” pelo qual Chávez lutou. 55 países fizeram-se representar por chefes de Estado em seu funeral, dia 8/3/2013 (todos os países latino-americanos). 14 países latino-americanos decretaram luto oficial – entre os quais o governo direitista do Chile. Na contramão da comoção planetária, e da homenagem solene prestada por respeitados chefes de Estado latino-americanos, a Casa Branca limitou-se a uma declaração grosseira e fria e – para horror de muitos latino-americanos – sequer ofereceu condolências.

O que se vê é que presidente mais demonizado – apesar de democraticamente eleito e reeleito – da história do mundo tinha muitos amigos e admiradores – e não só “estados inimigos” como Irã ou Síria, imediatamente e incansavelmente mencionados no ‘jornalismo’ e nos ‘noticiários’ nos EUA. A ‘mídia’ nos explica agora que a simpatia se dirigiria ao petróleo venezuelano. Mas nenhum rei da Arábia Saudita jamais foi amado e homenageado como Chávez, vivo ou morto.

Os leitores do New York Times provavelmente surpreenderam-se ao ler, em coluna publicada semana passada, assinada por Lula da Silva, o popular ex-presidente do Brasil, que ambos sempre foram muito próximos e partilhavam a mesma visão de América Latina. É verdade, e há muito tempo: em 2006, quando Lula da Silva foi reeleito, sua primeira viagem ao exterior foi à Venezuela, para ajudar na campanha de reeleição de Chávez.

Encaremos os fatos: o que Chávez disse sobre o papel de Washington no mundo foi exatamente o que todos os presidentes de esquerda – hoje, ampla maioria na América do Sul – pensavam. E Chávez nunca se limitou a apenas falar: como Lula da Silva registra, Chávez desempenhou papel crucial na formação da UNASUR (União das Nações Sulamericanas), da CELAC (Comunidade de Nações da América Latina e Caribe), e em outros esforços e realizações para a integração regional. “Talvez suas ideias venham a inspirar os jovens do futuro, como a vida de Simon Bolívar, o grande libertador da América Latina, inspirou o próprio Chávez” – escreveu Lula da Silva.

Chávez foi o primeiro do que viria a ser uma linhagem de presidentes de esquerda democraticamente eleitos que transformaram a América Latina, e especialmente a América do Sul, ao longo dos últimos 15 anos, dentre os quais Nestor e Cristina Kirchner na Argentina, Lula da Silva e depois Dilma Rousseff no Brasil, Evo Morales na Bolívia, Daniel Ortega na Nicarágua, Fernando Lugo no Paraguai, José “Pepe” Mujica no Uruguai e Mauricio Funes em El Salvador.

Antes de Chávez, presidentes de esquerda que fossem democraticamente eleitos tendiam a ter o mesmo fim que teve Salvador Allende do Chile – derrubado por golpe organizado pela CIA, em 1973. Parte significativa da esquerda latino-americana, inclusive o próprio Chávez, continuavam céticos sobre a eficácia da via eleitoral para mudar a sociedade, ainda 20 anos depois, dado que as elites locais, apoiadas por Washington, sempre tinham um ‘veto’ ilegal, ao qual recorriam quando dele precisavam.

Chávez soube ter papel vital na “segunda independência” da América do Sul, porque foi diferente de outros chefes de Estado, em vários importantes sentidos. Percebi isso logo na primeira vez que o encontrei, em abril de 2003. Dava a impressão de falar a todos do mesmo modo – fosse quem lhe trazia o almoço no palácio presidencial, fossem visitantes que ele admirava. Chávez falava muito, mas também era ouvinte atento e concentrado.

Lembro de um jantar, há poucos anos, com mais de 100 representantes de grupos da sociedade civil de todo o continente – ativistas que trabalhavam para o cancelamento das dívidas de países pobres, para a reforma agrária, muitas e muitas variadas lutas. Chávez ouviu longa e atentamente, anotando sem parar, por mais de uma hora, com os convidados à frente dele, apresentando o que cada grupo fazia. Ao final, com as anotações diante dos olhos, falou, com resposta para cada um dos grupos: “OK. Agora, aqui está o que me parece que podemos fazer para ajudar vocês.” Não sei de qualquer outro presidente capaz de trabalhar assim.

Não era simulacro ou demagogia. Em Chávez, nada era simulacro ou demagogia. Sempre dizia o que pensava – o que nem sempre é adequado, num chefe de Estado. Mas a maioria dos venezuelanos amava aquela franqueza, porque dava a Chávez uma densidade, uma realidade que poucos políticos têm: era, portanto, alguém em quem se podia confiar.

A atitude não mudava em relação a outros governos. Embora tenha tido grandes brigas públicas com alguns governos, praticamente nunca criticou outro chefe de Estado, a menos que tivesse sido atacado antes. Manteve boas relações até com o governo direitista de Alvaro Uribe da Colômbia, durante vários anos; até que Uribe virou-se contra ele, o que Chávez interpretou (provavelmente com razão) como Uribe agindo sob ordens dos EUA. Quando Manuel Santos, que fora ministro da Defesa de Uribe, tornou-se presidente da Colômbia, em agosto de 2010 e decidiu restabelecer boas relações com Chávez, encontrou a porta aberta. As relações foram imediatamente recompostas. Chávez era amigável com qualquer um que não o agredisse.

Mas havia mais que traços de personalidade e a busca de alianças – das quais Chávez precisava, se quisesse sobreviver, depois que o governo Bush declarou publicamente, em 2002, que tinha intenções de derrubá-lo (embora essa informação tenha passado praticamente sem qualquer notícia na imprensa-empresa dos EUA, há provas documentais consistentes do envolvimento de Washington no golpe militar de 2002 contra Chávez). Chávez tinha visão solidária do mundo. Ele e seu governo construíram inúmeras políticas que não se orientavam pelo princípio de que “nações não têm amigos: nações têm interesses”.

Sempre viu as injustiças e desequilíbrios da ordem econômica e política mundial do mesmo modo como via as injustiças sociais dentro da Venezuela – como males sociais e algo que se podia combater com sucesso. Por que os EUA e meia dúzia de aliados ricos controlariam o FMI e o Banco Mundial? Ou por que escreveriam, só eles, as regras de comércio da OMC, ou da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas, que Chávez ajudou a derrotar)? A Venezuela não tinha qualquer interesse nacional específico nessas lutas, porque é dos grandes exportadores mundiais de petróleo.

Mas Chávez entendeu que eram lutas importantes para todos, e seu pensamento coincidiu com o que estava acontecendo no mundo: todo o planeta se encaminhava rapidamente para se tornar economicamente mais multipolar. A China, por exemplo, a qual, segundo as mais confiáveis estimativas de seu poder paritário de compra [orig. purchasing power parity), já é a maior economia do mundo, praticamente não tem voz nem voto nem no FMI nem no Banco Mundial. Outros países em desenvolvimento têm ainda menos. As ideias de Chávez, portanto, ressoaram cada vez mais profundamente, em grande parte do mundo, especialmente na América Latina.

Por outro lado, a história de Chávez também mostra o enorme poder da imprensa-empresa, a chamada ‘mídia’, no serviço de modelar a opinião pública. Muitos governos conhecem bastante bem as realizações do governo Chávez, mas, porque a imprensa-empresa norte-americana e, por via de repetição, a imprensa-empresa latino-americana só veiculavam, quase exclusivamente, ‘informação’ negativa sobre a Venezuela, durante 14 anos – sempre ‘informação’ exageradamente negativa e não raras vezes, ‘informação’ falsa –, a maior parte da população no hemisfério ocidental jamais conheceu sequer os fatos básicos sobre a Venezuela ou sobre o governo de Chávez.

Poucos sabem que, depois que Chávez alcançou o controle sobre a indústria do petróleo, a economia da Venezuela passou a crescer muito bem; a pobreza foi reduzida à metade e a pobreza extrema, em mais de 70%. Poucos sabem que a maior parte desses ganhos veio do crescimento do emprego no setor privado, não de “esmolas do governo”. Poucos sabem que milhões de venezuelanos ganharam acesso a serviços públicos de saúde pela primeira vez; e que melhoraram todos os indicadores de educação (o número de matriculados no ensino superior duplicou); e que o número de aposentados saltou, de 500 mil, para mais de dois milhões.

De fato, a imprensa-empresa ocidental praticamente pintou a Venezuela como total fracasso econômico e político. E bem poucos sabem que nada há que assemelhe a Venezuela a algum tipo de “estado autoritário”. De fato, a imprensa-empresa venezuelana ainda faz, até hoje, campanha contra o governo. É um tipo de ‘jornalismo’ que ensina a não saber o que Chávez fez pelo hemisfério – não só os bilhões de dólares que distribuiu como ajuda, pelo programa Petrocaribe e outros, mas também – como Lula da Silva explicou – o papel que desempenhou na promoção da unidade continental e da segunda independência da América Latina.

Essa independência é muito mais que questão de orgulho nacional ou regional; é mais, até, que uma das mais radicais mudanças geopolíticas, até aqui, do século 21. É mudança que teve consequências imensas para os latino-americanos, onde a pobreza já caiu, de 42% no início da décadas, para 27%, em 2009. Difícil imaginar esse tipo de avanço econômico e social, no tempo em que a região vivia sob tutelagem do FMI/Washington; de fato, na região, como um todo, entre 1980 e 2000, o crescimento do PIB per capita foi praticamente zero.

A maioria das pessoas em todo o hemisfério ocidental receberam uma visão à moda “Tea Party”, da Venezuela, com a imprensa-empresa liberal e de direita, praticamente idêntica, sem noticiar praticamente nenhum fato, só mentiras, sobre a Venezuela e seu governo. Por tudo isso, trava-se hoje uma nova batalha pela definição do legado de Chávez – e muitos já lutam para preservar os ‘ganhos’ que conseguiram na campanha para demonizar Chávez. Para esses, a onda de simpatia e de respeito por Chávez e por seu governo que se vê crescer em todo o mundo é problema real.

Fato é que, durante os 14 anos de governo Chávez, os EUA perderam a maior parte da influência que sempre tiveram na América Latina, especialmente na América do Sul. Pode-se pois dizer com razoável certeza, que, na batalha contra Washington, Chávez venceu. E, com ele, a região e o planeta venceram. Por isso, será para sempre honrado, respeitado e lembrado – como foi, dia 8/3/2013, por praticamente todo o mundo.

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